Um código de barras vítreas de Marcello Nitsche
Uma das coisas que impressiona em qualquer levantamento sobre a presença do mosaico no
Brasil é o interesse generalizado que a arte desperta em todos os grupamentos artísticos, desde o mais modesto até os de nomes
consagrados como alguns dentre aqueles que se inscrevem na extração mais recente da Arte Contemporânea e que a exercitam assim
mesmo, com letras maiúsculas.
Aqui neste site, já vimos obras em mosaico assinadas por artistas como Carmela Gross,
Leda Catunda, Leonilson e muitos outros posicionados no topo do reconhecimento artístico. É interessante avaliar esse quadro
e tentar descobrir o que o anima, o que leva um artista de grande reconhecimento da crítica de nosso tempo a optar pelo mosaico,
uma arte milenar que, ao se popularizar nos dias de hoje, muitas vezes se torna esnobada por algumas correntes de vanguarda.
Afinal, alguns artistas de hoje se reconhecem em manifestações de arte efêmera, da qual
muitas vezes nem registro fotográfico deixam para trás. Ou para frente. O enigma ou, digamos, a arte codificada passou a ser
buscada por algumas vertentes das artes contemporâneas. Quanto mais “codificada” e exigindo uma bula explicativa,
melhor. O código passou a ser o senhor das artes. Mas não de todos.
Quem se aprofunda no conhecimento do universo das artes plásticas brasileiras sabe diferenciar
quem a “complica” e quem contribui verdadeiramente para descomplicá-la e torná-la um campo fértil para experimentações
no campo da liberdade de expressão. Afinal, é o sopro da liberdade que faz a arte avançar.
Tome-se, por exemplo, o caso de um nome como o de Marcello Nitsche, um dos maiores expoentes
da arte contemporânea, pela dimensão de sua obra e sobretudo pela constância de sua produção artística nos últimos 40 anos.
Sua presença na constelação artística brasileira é um verdadeiro referencial pelos conceitos que aporta na renovação constante
de seu trabalho, sempre antenado criticamente com as inovações tecnológicas de nosso tempo.
É o caso, entre muitos, das reflexões que vem adotando de um tempo a esta data sobre os
múltiplos signos e significados de um novo elemento introduzido em nosso cotidiano, chamado código de barras, que veio ao
mundo para controlar a produção e o consumo das mercadorias na economia de escala mundial.
Essa vertente do trabalho artístico de Marcello Nitsche procede do início desta década,
quando pinta um painel com mais de 12 metros de altura em frente à sua casa, em S. Paulo. Ao
situá-la perante a crítica, o artista avaliou que essa é mais uma maneira de discutir a globalização e para tanto inscreveu
os códigos com marcas simbólicas e referenciais do consumo internacional, como Coca-cola, Microsoft e Marlboro. Ao tomar para
sua arte esse novo ícone do capitalismo, Nitsche redesenhou sua própria arte, canibalizando as barras de controle mercadológico
para exibi-las em outros contextos, expondo as vísceras desse mecanismo de controle global.
Em algum trabalho crítico sobre essa fase do artista foi dito que ao refazer o código
e os números ali inscritos, inseriu em uma delas a data do ataque às torres gêmeas de Nova Iorque, como quem revela segredos
da globalização internacional ao exibir as limitações dos mecanismos de controle da atividade humana por códigos informatizados.
A arte também tem suas limitações. Por mais liberdade que usufrua, sempre há balizamentos impostos pela sociedade ou por segmentos
dela, inconformados por não entender ou não aceitar algumas atitudes permitidas pela contemporaneidade.
Nem sempre o artista de vanguarda precisa estar na vanguarda. Muitas vezes precisa olhar
para trás e buscar o popular, dar a mão ao povo para buscá-lo e explicar sua obra, como ela deve ser usufruída, enfim, ter
humildade no artesanato deste novo olhar, da nova linguagem contemporânea.
Um mosaico, que tem cinco mil anos de presença na história do homem, é um padrão artístico
de fácil entendimento, que fala por si mesmo. E a opção pelo seu uso num painel reproduzindo essa fase do código de barras
no espaço de uma repartição de governo em São Paulo só pode contribuir para a divulgação do trabalho artístico,
universalizando conceitos e decodificando a obra. É importante neste caso levar em consideração o que dizia a grande gravadora
e professora Fayga Ostrower, segundo a qual “quando se dá outra forma a um conteúdo, modifica-se o conteúdo” .
Como a maioria dos painéis em mosaico, o de Marcelo Nitsche guarda uma beleza expressiva,
mas transcende esse aspecto por exigir reflexão sobre a objeto representado, seus números e referências. Afinal, estamos em
frente a um código com suas áreas movediças. Como obra de arte contemporânea,
é preciso entender seus elementos, seu propósito e sua razão de ser. O código do mosaico é outro, da beleza das tesselas,
da magia da segmentação das cores, pelos interstícios das pastilhas. Entre uma proposta e outra, há o código de barras: um
recorte mínimo de um mundo cada vez mais rico de indagações e pobre de respostas.
HGougon, agosto
de 2009
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