O mosaico vivo, Vitória Basaia
A
leitura dos textos críticos de Oscar D’Ambrosio tem sido um ponto de referência importante aqui neste espaço para o
conhecimento da trajetória de alguns artistas de grande densidade plástica que costumam atuar distantes dos grandes centros
de legitimação artística, mas que nem por isso deixam de apresentar uma produção de obras de grande densidade criativa, alheios
às questões de mercado e conduzidos, antes de qualquer coisa, pelo impulso interior e pelo contato com as realidades dos ambientes
isolados em que vivem.
Em D’Ambrosio
é possível encontrar reflexões densas sobre artistas outsiders, muitos deles já falecidos, como o salineiro da Casa da Flor,
em São Pedro da Aldeia, Joaquim Gabriel dos Santos, ou sobre o geógrafo Carlos Luis de Almeida, construtor
da Casa dos Cacos de Louça, em Contagem, MG. O crítico é, seguramente, um farol de grande luminosidade nessa seara de identificação
de talentos escondidos no interiorzão deste nosso país de dimensões continentais.
Não surpreende que
D’Ambrosio tenha encontrado o que ele designou como “a casa dos guardados”, habitada pela jornalista e artista
plástica Vitória Basaia, nos confins de Várzea Grande, próximo a Cuiabá, no Mato Grosso. Ali, ela reúne cabeças de bonecas
dentro de garrafas plásticas, pinta conjuntos de cabeças, refaz as peças que encontra pela frente, costura e recostura bonecas
de pano, dá-lhes nova cor e significado, opera transformações de sentido, algumas vezes com características sensuais e imprevistas.
Sua arte parece estar sempre em mutação e boa parte delas resulta mesmo do processo de coleta de peças semelhantes para formação
de uma terceira, com novo sentido e nova densidade plástica.
O colecionismo como
obra de arte já foi descrito aqui neste espaço no capítulo que trata da obra de Arthur Bispo do Rosário, no qual se viu que,
além dele, outros nomes consagrados no mercado de arte também recorrem ou recorreram ao colecionismo para produzir novas leituras
e novas realidades traduzidas pelo alinhamento dos objetos colecionados, como ocorreu, por exemplo, com Farnese de Andrade
(na última fase), e também se apresenta em muitas obras de Nelson Leirner e Rosângela Rennó, entre muitos outros.
A arte de Vitória
Basaia não é estranha ao colecionismo. Talvez seja um colecionismo mais exótico e que sofre intervenções mais densas por parte
da artista, que parece ter ido residir tão longe para se articular melhor com as forças misteriosas da terra e com a magia
interior com que reescreve seu próprio mundo e o sentido denso da vida. E da sua própria vida.
Tudo nela é enigma
e mágica, até mesmo essa trajetória inesperada em seu percurso de vida, iniciado como jornalista na grande cidade e vindo
a se instalar no extremo oeste brasileiro em busca de uma relação direta com a terra e com a cultura da terra, perto das aldeias
indígenas e da essência da existência humana mais primitiva. Para realização de suas peças vale-se de tudo que encontra ao
seu redor, unindo e cruzando significados para obter novos olhares e novas possibilidades visuais.
Dentro dessa perspectiva,
pode-se observar que boa parte de sua produção artística decorre da atitude colecionista , seja de garrafas plásticas, seja
de cabeças de bonecas, seja lá o que for e que esteja disponível para extrair da conjugação das peças a realização de sua
obra.
O crítico Oscar D’Ambrosio
conheceu sua casa e traçou um retrato profundo de admiração e respeito pelas soluções éticas e estéticas da artista, concluindo
que “Vitória Basaia tem um compromiso de produzir sempre e de surpreender a si mesma e aos outros com suas soluções”
Enfim, fica claro
que a arte e a vida de Basaia traduzem uma história de entrelaçamento caprichoso, moldada pela ousadia e pelo talento. Em
seu estilo de trabalho há que se reconhecer a prática colecionista como um método e exercício de elaboração artística.
Tal procedimento guarda
certo paralelismo com a compulsão de outros artistas que constroem e reconstroem suas próprias casas indefinidamente, usufruindo
o prazer buscado por todo artista, de morar dentro da própria obra, conforme observou Ferreira Gullar ao descrever a prática
artística do salineiro Joaquim Gabriel dos Santos em São Pedro da Aldeia.
A obra de Vitória
Basaia guarda, inegavelmente, um certo paralelismo com esses casos de compulsão artística e também com o colecionismo como
prática de trabalho. Mas seria incômodo classificá-la como uma artista do mosaico, coisa que ela não faz. Seu método de trabalho
e sua obra parecem indicar a existência de uma certa conexão com o inconsciente que lhe permite traduzir em peças artísticas
suas angústias e visão do mundo, de forma densa e surpreendente. O mosaico, neste caso, é ela própria, um mosaico vivo, resultado
da multiplicidade de suas conexões emocionais com o universo, com a magia do espaço e das peças que extrai de suas próprias
entranhas para decodificação do mundo.
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