Um detalhe pouco (?) pichado |
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Se fazem isso com Clóvis Graciano, imagina com autores menos conhecidos |
Cadê o Clóvis Graciano que estava aqui?
A indicação não deixava dúvidas. O número é o 1833 da Avenida S. João,
coisa de 12 a 15 quarteirões após o cruzamento com a Ypiranga: Edifício Ararunas. De fora, dá para apreciar a fachada imponente,
em curva, obra típica dos anos 50, mas a portaria é acanhada, estreita, esprimida entre lojas que confirmam o aspecto de decadência
da via: ferragens, miudezas, armarinhos, consertos de geladeira.
Fui entrando sem pedir licença até porque não havia a quem fazê-lo.
Ao final de um corredor estreito, recém-pavimentado com cerâmicas brancas, de baixo preço e qualidade, estanquei defronte
um balcão e um porteiro, um pouco gordo, um pouco sonolento, de bigodinho ralo, jeitão cordial.
- Bem, estou procurando por uma obra de arte, um painel de um autor
já falecido, Clóvis Graciano, que fez para este prédio um trabalho decorativo na época da construção do edifício ...
- Ah, uma espécie de pintura feita com pastilhas?
- É, isso mesmo, onde fica?
- Aqui mesmo, atrás de mim – disse apontando para o espaço acima
de sua cabeça, a parede toda branca. – O condomínio fez uma reforma aqui no corredor. Nessa parte de trás substituiu
aquele quadro velho das pastilhas por essas cerâmicas iguais às do piso. Já tem seis meses que a reforma terminou.
Parti dali com o coração inquieto. E cada vez mais apreensivo. Peguei
um táxi e me mandei para outra referência que não deixava dúvida. Rua João Lourenço, 797. Obra do arquiteto Abelardo Souza:
Edifício Bienal. Nele, se tivesse sorte, encontraria outra obra de Clóvis Graciano,
que ele fizera em 1955 para a fachada do prédio. Não podia ter desaparecido...
Pedi ao taxista que me deixasse alguns números antes e continuei a pé
até encontrar o edifício. Obra de gabarito contido, quatro pavimentos. Olhei para cima e vi as janelas, em madeira, todas
fechadas. Desci a vista para a portaria e li a faixa : “Vende-se”. Olhando por trás de dezenas de pichações superpostas,
identifiquei, finalmente, uma obra musiva de Clóvis Graciano, toda danificada,
suja, humilhada e, provavelmente, perdida para sempre. A venda, inequivocamente,
significará a demolição do prédio para a construção de outro mais empinado, de acordo com o novo gabarito aberto para a área.
A obra de Graciano ainda não feneceu, mas está pra lá de moribunda. (Ver nota do autor deste
artigo ao final do texto)
São Paulo é emoção pura. No dia seguinte, fui ao Centro Empresarial Itaú, onde pude apreciar um novo painel
em pastilhas da Vidrotil, reproduzindo obra de Vik Muniz. Trabalho gigantesco que faz uma releitura da obra original do artista,
toda ela realizada com calda de chocolate.
Também fui ver o prédio da Avenida Angélica, de onze andares, todos
eles ornados por uma sucessão sem fim de grafismos geométricos assinados por Cláudio Tozzi, em pastilhas de 18 tonalidades
diferentes de azul. Obra com acabamento de primeira, executada pelo ateliê da competente arquiteta Isabel Ruas. E na Paulista,
fotografei a obra inédita que Burle Marx concebeu para o Edifício-Parque Cultural Paulista, onde esmerou-se na realização
de um jardim vertical que brota de dentro de um gigantesco mural em pedra portuguesa, muito semelhante, aliás, ao que realizou
na década de 50 para o Hospital Sousa Aguiar no Rio.
Deixei Sampa pensando e cantando de cabeça baixa aquela música
do Caetano, que fala da emoção quando se cruza a Ypiranga com Avenida S. João. E da força da grana que ergue e destrói coisas
belas.
H.Gougon, 31deOutubro de 2004
Três anos após redigir
essas notas sobre as obras degradadas de Clóvis Graciano, eis que fui agraciado com a notícia mais alvissareira que um pesquisador
e admirador de mosaicos poderia receber às vésperas do Natal: uma senhora residente no Edifício Bienal, Dona Joyce, me
enviou um e-mail relatando que o síndico do prédio, Sr. Artur Fernando Ávila, providenciou a completa limpeza e recuperação
do painel que se encontrava pichado e praticamente perdido. Mais ainda: A diligente moradora informou-me ainda que o síndico
também iria providenciar a colocação de uma chapa de acrílico sobre a obra para resguardá-la de outras pichações deletérias
e permitir a visibilidade pública da obra grandiosa de um dos maiores artistas modernistas da cidade de São Paulo. Minha gente,
isso deveria ir para a primeira página dos jornais deste país, pela importância de gesto tão digno e por seu significado para
a arte brasileira que deveria festejar esse resgate de valor inestimável, não apenas para o prédio, mas para a cidade de S.
Paulo e para o País.
Seguem abaixo fotos dos mosaicos de Clóvis Graciano, no Edifício Bienal, da época em que a obra estava
vandalizada, e novas fotos obtidas ao final de novembro de 2007 do painel recuperado. Tudo inacreditável!
Sujeira esconde assinatura de Graciano |
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assinatura de Graciano em meio a riscos de analfabetos |
Obra de Graciano recuperou as cores originais |
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Verdadeira obra-prima de restauro |
Clóvis Graciano, obra imortalizada em São Paulo |
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