Prestidigitador.
A palavra é esta. Pensei em chamá-lo de mágico da cor, de ilusionista, de mago, mas nada disso seria forte o suficiente para
descrever minhas emoções diante da obra monumental construída por Eduardo Sued ao longo das últimas cinco décadas. O significado
de sua atividade artística transcende de muito qualquer simplificação de palavras. Parece evidente que há nele magia, encantamento
e um jogo indecifrável de ilusionismo cromático, só alcançável por iniciados. Daí a opção por qualificá-lo de prestidigitador,
uma expressão pouco ou nada usual, reservada pelos dicionários a algum tipo de performance do inexplicável, para além do místico,
do truque ou do acaso. Tudo em sua obra faz sentido, mas permanece enigmático, exigindo mais estudos, aprofundamentos e uma
percepção sem limites na decifração de seus enigmas.
obra prima em prédio da Tijuca |
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Eduardo Sued, o gênio da cor |
É
o caso, entre muitos, desse painel em mosaico que projetou e executou em 1954. Encontrei a descrição por acaso, ao identificar
sua existência no belíssimo, completo e caprichado livro da crítica Ligia Canongia, editado pela Cosac&Naify. Uma obra
basilar para qualquer interessado no conhecimento da vida e da produção artística de Eduardo Sued. Descrevendo suas atividades
ano a ano, Lígia começa abordando seu nascimento no Rio de Janeiro em 1925, filho de imigrantes sírios; seu curso de Engenharia,
abandonado no terceiro ano, em 1948; sua amizade com Tom Jobim e Newton Mendonça
quase na mesma época; sua iniciação em desenho de arquitetura no escritório de Oscar Niemeyer em 1951; sua viagem a Paris
no ano seguinte; até que, em 1954, a minuciosa descrição da biógrafa informa:
“Aluga um ateliê provisório no bairro de Santa Tereza, Rio de Janeiro, para executar,
auxiliado pelo artista Otávio de Araújo, o projeto de um grande mosaico de pastilhas, instalado no mesmo ano na fachada de
um prédio residencial à rua Haddock Lobo, na Tijuca”.
Em busca do mosaico-mural
Não
descansei mais enquanto não descobri o painel. Minha mulher ajudou-me na empreitada. Pegamos o metrô carioca e descemos na
estação do Estácio, próxima a qual começa (ou termina) a rua Haddock Lobo. Ela foi por uma calçada e eu fui pela outra, caminhando
lentamente, buscando prédio por prédio. De vez em quando gritávamos um para o outro, mas nada de encontrar a obra. Nenhum
sinal à vista. Depois de cerca de 40 minutos de caminhada, já pertinho do término da rua, ela me gritou: Achei !!! Atravessei
a rua correndo e me deparei, por trás das grades do prédio, com um belíssimo trabalho representando uma mãe brincando com
seus filhos. Nada mais próprio para o sentido que o prédio exigia naquele período, uma sensação de conforto e paz familiar.
O
porteiro do prédio abriu a grade, gentilmente, permitindo meu ingresso. Uma atitude amistosa, cada dia mais impensável no
Rio de Janeiro. Pude então fotografar o painel e conversar com um ou outro morador do prédio no entra-e-sai daquele espaço.
Uma senhora idosa, culta e sensível, falou-me de seu espanto diante revelação da autoria. Conhecia bem o trabalho de Eduardo
Sued, mas jamais imaginara que fosse dele aquela peça pela qual passava diariamente. Pudera. O painel não contém assinatura,
uma lástima, uma omissão inexplicável.
A
história não termina aí. Precisava confirmar a autoria, até porque a obra, de características figurativas, não guarda nenhuma
identidade com a vastíssima produção de Eduardo Sued ao longo das últimas décadas. Estava no Rio e ali mesmo procurei na Lista
Telefônica o número do artista. Havia vários endereços, mas a intuição me levou a discar para um telefone em Jacarepaguá. Acertei em cheio. Ele mesmo atendeu. Identifiquei-me como um estudioso de mosaico.
Não iria dizer que era um “mosaicólogo”, soaria pedante e incompreensível. Sued me passou a impressão de ter ficado
emocionado com minha descoberta. A certa altura da conversa, partiu dele a iniciativa de comprovar se a obra era, realmente,
a que realizara em 1954. Perguntou-me então como era o desenho do painel. Disse que era uma mulher brincando com dois meninos e ele então ficou ainda mais interessado, querendo saber sobre o estado da
obra. Disse que estava muito bem conservado, mas faltava sua assinatura ou quando
nada uma plaquinha identificadora. Daria mais orgulho aos moradores do prédio e, com certeza, mais motivação para mantê-lo
preservado.
Octávio
Araújo, o parceiro
Por
último, é preciso dizer alguma coisa sobre Octávio Ferreira de Araújo, que foi parceiro de Eduardo Sued na execução do mosaico.
Trata-se igualmente de um artista expressivo, da mesma geração, tendo nascido em Terra Roxa (SP) em 1926. Residiu boa parte de sua
vida no exterior, a partir de 1947, quando se matriculou na Ecole des Beaux Arts, na França. Na ocasião, auxiliou o grande
mestre Portinari na execução do painel “Pescadores”, vindo a trabalhar com ele em outras obras a partir de 1952,
já no Brasil. Em 1957, conheceu a China, levando uma exposição de arte brasileira. Em 1960 inscreveu-se no Instituto Poligráfico
de Leningrado, na antiga União Soviética, retornando ao Brasil em 1968, com uma bagagem portentosa de estudos e conhecimentos
artísticos. Não possuo informações mais precisas sobre seu envolvimento, na China ou na URSS com as atividades do Partido
Comunista, o que faria sentido diante da forte competição ideológica que marcou aquele período, mas é no mínimo curioso saber
que, ao retornar ao Brasil, recebeu um convite para ilustrar uma edição de luxo da Ode Marítima
de Fernando Pessoa. O convite partiu de Carlos Lacerda, ex-governador do Rio de Janeiro, conhecido como um dos nomes mais
expressivos da extrema direita brasileira, nas décadas de 50 e 60.
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