Arthur Bispo do Rosário, o mosaico da sobrevivência
Quem se interessar pelos estudos críticos
da obra de Arthur Bispo do Rosário produzidos após sua morte, em 1989, vai verificar que neles se repetem expressões como
assemblage de materiais, agregação de resíduos, coleção de peças, ordenação de
objetos, acumulação de cacos, obsessão de reunir detritos, etc...
São expressões que definem atitudes
características do universo próprio da realização do mosaico e não diferem em nada dos textos de apreciação crítica que comparecem
nos estudos sobre a compulsão de artistas solitários, geralmente pobres, como o salineiro Gabriel dos Santos, construtor da
Casa da Flor, em São Pedro da Aldeia, que passaram a vida coletando peças inúteis encontradas à sua volta
e dando-lhes novo significado. Tiveram também seu reconhecimento após a morte, comparados algumas vezes com artistas do mosaico,
cuja atividade envolve atitudes paralelas, como a procura de pedaços ou partes inúteis da matéria, qualquer que ela seja (vidro,
cerâmica, azulejo, mármore, granito ou qualquer outro material sólido) para dar-lhes um terceiro significado, resultante do
ordenamento dos pedaços.
A questão do colecionismo como
obra de arte e a compulsão neste sentido tornaram-se hoje objeto de estudos teóricos sobre esse fenômeno que tem em
Arthur Bispo do Rosário uma figura emblemática pelos impulsos interiores que o levaram a colecionar as poucas
e pobres peças a seu redor, dando-lhes um outro significado plástico, reconhecido e glorificado nas tendências atuais da arte
contemporânea.
Dentre os estudos teóricos
dessa vertente, vale consultar artigos disponíveis na Web, como por exemplo:
1)As Obras de Arthur Bispo
do Rosário; ensaio fenomenológico1, Latife Yazigi2. USP;
2) Colecionismo e Arte em
Arthur Bispo do Rosário, de Márcio Seligmann-Silva;
3) Apropriação
na arte contemporânea: colecionismo, de Virginia Cândida Ribeiro, mestranda do programa de Pós Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFMG;
4) A Epistemologia
e o Espírito do Colecionismo, anais de um colóquio em Porto Alegre,
ocorrido em 2005, com este tema.
Virginia Cândida Ribeiro chegou a catalogar
alguns artistas destacados da arte contemporânea nacional que optam ou optaram pela prática do colecionismo para ordenar as
peças de tal maneira que o conjunto delas implica um novo significado artístico. O primeiro nome da extensa lista
é Farnese de Andrade, que em sua última fase produtiva colecionava peças variadas de bonecas com rostos angelicais e outros
adereços para colocá-las em “altares” pintados e envernizados, emprestando-lhes nova representação ética e estética.
Para Virgînia Cândida Ribeiro, a mesma atitude
é comum aos artistas Rosângela Rennó, Elida Tesler, Lótus Lobo, Nelson Leirner, Maria Ramiro, Adriana Boff, Fabiana Passarola,
Walmor B. Correa, Virgínia de Medeiros, Paulo Gaiab, Mabe Bethônico, Oriana Duarte. Todos esses, segundo seu testemunho, “fazem
ou fizeram da apropriação e da prática de colecionar os elementos estruturais de suas respectivas práticas poéticas”.
Tais estudos têm em comum
a tentativa de elaboração teórica do universo de Arthur Bispo do Rosário, que foi um caso bem específico e notório por sua
exacerbada criatividade e também pelo contraste representado pelas enormes limitações que lhe foram impostas desde que se
tornou interno da Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, onde passou a maior parte de sua vida, após
ser diagnosticado, em 1938, como esquizofrênico-paranóide e tratado com eletro-choque.
Sua história é hoje bem conhecida:
nascido no interior de Sergipe, em 1909, mudou-se para o Rio de Janeiro em 1925, tornando-se aprendiz de marinheiro. Deixou
a Marinha depois de oito anos de serviços embarcados, vindo a ocupar-se como empregado doméstico da residência de um advogado
abastado da cidade. Às vésperas do Natal de 1938, começou a ter visões. Dizia ver cortejos de anjos que lhe anunciavam missões
celestes. Procurou igrejas e conventos, que lhe redirecionaram para clínicas e hospícios. Nessa trajetória, acabou no manicômio
de Jacarepaguá, onde sua penúria só não foi maior porque aprendera a lutar boxe na Marinha, o que permitiu impor um certo
respeito entre os demais internos.
Os desenhos, as pinturas e as esculturas
foram as linguagens mais empregadas pela maioria dos internos. Mas Bispo do Rosário fez seu próprio caminho. Criou objetos
a partir de outros objetos, exatamente como se faz na arte do mosaico. Reuniu, agregou, juntou, colecionou e ordenou pedaços,
lixos, detritos, sobras, botões e ornamentos, todos eles costurados sobre algum suporte têxtil. O procedimento acabou por
colocá-lo mais próximo do universo de criações contemporâneas, o que explicaria o interesse especial que sua obra desperta
hoje. É uma situação no mínimo instigante: a linguagem que o coloca num patamar de vanguarda é a mesma que está na base da
realização artística primordial no processo civilizatório, que ocorre mediante a coleta de conchas, de penas de ave, de pedras
e outros recursos rochosos.
Dentre os objetos mais vistosos
produzidos por Arthur Bispo do Rosário e que mais atraem a atenção dos críticos, encontra-se o chamado “Manto da Apresentação”,
uma indumentária que executou durante boa parte de sua vida de interno e com a qual pretendia vestir-se na hora de apresentar-se
a Deus. Também aí, há elementos mais do que suficientes para análise do procedimento arquetípico, que é a idéia de vestir
os mortos com sua melhor roupa, uma mortalha de luxo, uma espécie de “agasalho para a travessia”. Infelizmente,
não pôde vesti-lo na hora da travessia. A peça tornou-se obra referencial para as artes plásticas brasileiras e foi tombada
pelo serviço de patrimônio estadual, juntamente com as demais peças de Jacarepaguá. Muitas delas saíram de lá nos anos 90
para uma tournée promovida pelo Centro Cultural do Banco do Brasil, que mereceu muitas análises e comentários de críticos
e curadores, alguns deles traçando paralelismos inquietantes entre as obras de Bispo e as de Marcel Duchamp, realizadas algumas
décadas antes.
A grande ironia que fecha esse comentário está ligada
aos restos mortais de Arthur Bispo do Rosário, que foram levados para sua terra natal, Japaratuba, em Sergipe. Sobre a lápide,
seus conterrâneos confeccionaram uma escultura de corpo inteiro, sobre uma base vistosa, decorada com... mosaicos de cacos
cerâmicos.
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