ESTE É O PAINEL FOTOGRAFADO EM SALVADOR |
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OBRA REFERENCIAL DO GÊNIO CARYBÉ |
ESTA É A SEGUNDA OBRA DE CARYBÉ EM SAMPA |
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OBRA CONSTA DA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO NA USP |
Todo artista
sabe muito bem que uma obra de arte é como um filho. A gente cuida e preocupa-se com seu destino a vida inteira. O artista
plástico Carybé - um argentino que se naturalizou brasileiro na década de 50 - deixou duas obras idênticas para a posteridade. Elas tomaram destino diverso. Uma foi morar em São Paulo, numa residência do bairro
Chácara Flora, onde ainda hoje orna a fachada de uma casa. A outra ficou em Salvador, na Rua João Botas, 222, decorando a
fachada de entrada de um edifício de apartamentos.
Fiz a descoberta
com certa perplexidade ao final de abril de 2004 num momento marcante desse mapeamento de ocorrências musivas pelo Brasil
afora. Para quem gosta de historinhas de sincronicidade à moda de Carl Gustav Jung, a situação pode ser considerada um prato
cheio.
Pela manhã
do dia 27 de abril recebi, por sedex, uma ansiada cópia da tese de mestrado da arquiteta paulista Isabel Ruas Pereira Coelho,
sem dúvida uma das maiores autoridades brasileiras, senão a maior, na área de conhecimento sobre mosaicos. Sua tese versa
sobre os painéis musivos na arquitetura de São Paulo entre 1945 a 1964. Fiquei
muito emocionado com seu estudo sobre a aventura do muralismo brasileiro e o uso da linguagem do mosaico por muitos artistas
modernistas. Alguns casos me chamaram a atenção e me comoveram, mas guardei um
impacto especial ao descobrir que também Carybé fizera mosaicos!
A arquiteta
documentou e exibiu na tese um dos trabalhos musivos que o baiano argentino realizara na capital paulista, o que ampliou ainda
mais minha convicção sobre a força que a linguagem dos mosaicos teve no exercício artístico dos modernistas nos anos 50.
Ao final da
tarde, vesti-me devidamente para ir a um vernissage chique promovido pela embaixatriz Lúcia Flexa de Lima num espaço cultural
do Tribunal de Contas da União. Coisas de Brasília. A exposição, idealizada por ela, reuniu obras de quatro dos principais
artistas da fase construtiva da cidade: Alfredo Ceschiatti, Bruno Giorgi e Rubem Valentim, todos já falecidos; e Athos Bulcão,
com 84 anos, que reside em Brasília desde 1958. Uma mostra importante, sem dúvida, mas que, a exemplo de muitas outras que
circunstancialmente ocorrem na cidade, acabam atingindo um público muito restrito e, no mais das vezes, distanciado ou mesmo
indiferente à qualidade e significado da produção artística exposta nesses espaços, de pouquíssima circulação.
Na organização
da mostra participou um restaurador da minha estima e amizade, José Roberto Furquim, encarregado de providenciar reparos em
algumas das esculturas dos quatro mestres. Ao sair com ele do TCU, ao final do vernissage, ouvi o seguinte: “Eu tenho
um irmão que reside em Salvador e, no prédio em que habita, há um painel em pastilhas assinado por Carybé”.
Pronto, estava
desenhada a primeira grande “sincronicidade” sobre o artista, ocorrida no mesmo dia. É claro que fiquei exaltado
e sugeri a possibilidade dele solicitar uma foto para que eu pudesse tomar conhecimento da obra. Na manhã do dia seguinte,
Vavá Furquim, irmão do restaurador, me enviou três fotos por computador, todas elas retratando partes da obra de Carybé.
Ao cotejá-la
com a foto do mosaico que ele fizera para São Paulo, descobri que se tratava
do mesmo painel! Uma descoberta no mínimo curiosa, estranha, enigmática. Tornei a pedir uma foto completa do painel de Salvador
e só então deu para confirmar que as duas obras eram peças iguais, tal e qual gêmeos univitelinos.
Trata-se de
um mural formado por meia dúzia de painéis. Em Salvador, os painéis organizam-se de uma forma; em São Paulo, foram apresentados
de outra. A impressão deixada é que Carybé ordenou os painéis de forma diversa para atender às especificações diferentes de
comprimento e altura nas duas áreas em que foram executados. O painel de São
Paulo tem um detalhe a mais: um desenho de um caranguejo sob um pássaro. Ambos evadiram-se no painel de Salvador. Mas os demais
painéis são os mesmos, ou melhor, decorrem do mesmo cartão elaborado pelo artista.
Sinceramente,
fiquei em dúvida sobre como me expressar a respeito. Fui me aprofundar sobre o assunto e acabei deparando com uma entrevista
publicada poucos dias antes no Jornal A Tarde, de Salvador, na qual a filha de
Carybé, Solange Bernabó, externa preocupação com a possibilidade de ocorrer plágios da obra do pai.
Na entrevista,
Solange anuncia a intenção da família de fazer um projeto de catalogação semelhante ao que empreendeu o filho de Portinari,
professor João Cândido, para resguardo da obra do pai. “Muitas obras, as principais, têm destino conhecido por nós –
declarou ao jornal -. O paradeiro das demais será informado por seus donos, que vão querer ter a peça autenticada”.
Depois de consultar
pelo menos dois professores eméritos em história da arte (um de Brasília e outro do Rio de Janeiro), cheguei à conclusão de
que, exceto pelo pitoresco, não há nada de errado no procedimento do artista. Duplicar a realização de uma obra, executando-a
em lugares distintos, não é uma prática comum, mas não significa nada que possa
desmerecê-la. No caso, vale acentuar que a ocorrência decorre menos da lassidão do artista do que da constatação de que produziu
uma obra notável, merecedora de reprodução. Até porque, em se tratando de Carybé,
sua trajetória é riquíssima em criatividade, que explode em novos traçados e figurações, mesmo quando é compelido a trabalhar
velhos temas característicos de sua iconografia: os terreiros de candomblé, as baianas quituteiras, as rodas de capoeira,
os prédios baianos, etc...
É preciso atentar
também que existem casos semelhantes em muitas áreas de criação visual, especialmente no cinema e até na arquitetura. Para
não ir muito longe: Oscar Niemeyer, por exemplo, aceitou a encomenda do dono da Editora Mondadori, de Milão, que queria uma
sede nova para sua empresa à imagem e semelhança do Palácio Itamaraty, em Brasília. Apenas modificou as dimensões das arcadas
externas, mas os fundamentos da obra permaneceram os mesmos.
Carybé faleceu
em primeiro de outubro de 1997, vítima de ataque cardíaco durante uma cerimônia num terreiro de candomblé. O surgimento de
obras gêmeas tantos anos depois pode ser encarado como essas ocorrências comuns no histórico de muita gente boa, quando um
ou outro filho surge depois da morte do pai sem que a família soubesse antes.
Apenas isso.
A palavra carybé
vem de um peixe de água doce que foi dado à sua barraca de escoteiro num acampamento no Rio de Janeiro. O apelido passou a
ele por extensão e acabou substituindo, ao longo da vida, o nome de batismo recebido na cidade de Lanus, na Argentina, em
1911: Hector Julio Parude Bernabó.
Nascido de
pai italiano e mãe brasileira, foi levado aos três meses para a Itália onde morou até 1919, vindo para o Brasil onde ficou
por dez anos, os dois últimos como aluno da Escola Nacional de Belas Artes, no Rio. Em 1929, foi morar na Argentina, onde
iria permanecer por mais de 10 anos trabalhando como ilustrador e desenhista. Em 1935 e 36 trabalhou com Júlio Cortazar no
jornal “El Diário”. No ano seguinte, o jornal “Pregón” o enviou a Salvador para fazer uma reportagem
sobre Lampião, o rei do cangaço, mas ele chegou um pouco tarde: só deu para fazer desenho das cabeças cortadas do cangaceiro
e de Maria Bonita.
Retornou a
Buenos Aires, mas manteve um pé no Rio de Janeiro, onde seus pais moravam. Ilustrou em 1940 o livro Macunaíma, de Mário de Andrade, que traduziu para o espanhol, em parceria
com Raul Brie. Em 41, desenhou para o Almanaque Esso, ganhando uma soma tão atraente que lhe permitiu viajar por dois anos
através de imensas regiões do interior do Brasil, indo do pantanal mato-grossense ao interior de Minas, do nordeste até a
Amazônia, e de lá para a Bolívia até regressar a Buenos Aires. Salvador fez parte marcante deste itinerário. Voltou à cidade
em 1944, freqüentando aulas de capoeira e visitando candomblés, sobre os quais elaborou desenhos e pinturas. Em 46, ajudou
a montar o jornal Diário Carioca, no Rio de Janeiro, e Carlos Lacerda o chamaria de novo para auxiliar na diagramação da Tribuna
da Imprensa em 1949 e 1950.
O
destino de Carybé seria traçado em seguida pelo cronista Rubem Braga que, em seu favor, dirigiu uma carta ao Secretário de
Educação da Bahia, professor Anísio Teixeira, recomendando-o para um emprego de ilustrador, muralista, pintor ou qualquer
outra coisa. Era um artista múltiplo.
O emprego foi
conseguido e o artista nunca mais deixaria a Bahia. Em 1957 naturalizou-se brasileiro e o candomblé, que cantaria em cores
e formas, o reconheceu como Obá, um título que o enchia de orgulho. Em Salvador
participou intensamente do movimento de renovação das artes plásticas baianas ao lado de Mário Cravo, Jenner Augusto e outros.
Foi cenarista, diretor artístico e figurante do filme O Cangaceiro, de Lima Barreto, abrindo sua carreira para um leque de
linguagens plásticas que adotaria daí pra frente, sem medo de ser feliz. Abocanhou
em 59 o primeiro e segundo prêmio do concurso internacional para execução de painéis destinados ao Aeroporto John Kennedy,
em Nova York . E fez de tudo um muito: esculturas, pinturas, gravuras, cenários, ilustrações, artigos, aquarelas, desenhos
e... mosaicos, muitos mosaicos, alguns já conhecidos e outros, tenho certeza, que ainda virão a público.
Clique na figura abaixo e conheça Heinz Schueler, o artista que nas décadas de 50 e 60 executou
os painéis e murais concebidos por Carybé. Veja também cenas do painel aqui apresentado, assinado por Schueler e Carybé.
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