“Quando se sente bater no peito heróica pancada” : os mosaicos de Galileu
Emendabili aos mortos de 32
Apesar de mineiro, desde muito cedo em minha vida achava difícil aceitar o relato da Inconfidência Mineira como o evento
mais significativo das lutas e insurgências da história brasileira. Afinal, por
mais que se lê sobre o episódio, mais se vê que tudo não passou de uma conspiração sem armas, o que não leva, como não levou,
a lugar nenhum em caso de luta contra a tirania colonial. Na prática, não foi
mais que simples conversa de membros da elite para evitar ou atenuar o pagamento de impostos da Coroa.
Na luta pela afirmação da nacionalidade houve outras sedições muito mais sérias que resultaram em repressão mais violenta do que aquela que reservou a
Tiradentes o papel de expiar pela culpa de todos. A Revolta dos Alfaiates em 1798 na Bahia, por exemplo, provocou centenas
de mortos. As rebeliões em Pernambuco, de 1817 e 1824, resultaram em embates cruentos e projetaram mártires como Frei Caneca,
que morreu fuzilado porque não houve carrasco que aceitasse enforcá-lo. Mas todos esses movimentos de rebelião foram sempre
secundados na apreciação histórica nacional pela sedição de Minas Gerais.
Só comecei a perceber melhor o fenômeno após a leitura do livro basilar do historiador José Murilo de Carvalho –
A Formação das Almas -, no qual desvela o processo de mitificação empreendido por positivistas e republicanos nas décadas
finais do século XIX. Necessitavam de um mártir e Tiradentes era o que melhor servia ao desejo dos golpistas de 1889, que
passaram a moldá-lo à imagem e semelhança de Cristo, em verdadeiro ilícito histórico e despudor herético.
Na revisão da História que um dia se imporá, um dos movimentos cívicos mais importantes da vida brasileira passará
a ser identificado, a meu juízo, na revolta constitucionalista de 1932, que irrompeu em São Paulo, mas se alastrou por vastas parcelas do
território nacional, e levou as elites paulistas ao sacrifício de enviar seus
próprios filhos à frente das lutas. E a causa não poderia ser mais nobre: a causa da liberdade, da defesa de uma Constituição
para o país e de conter o ímpeto do ditador nascente. Mas Getúlio revidou de porrete e canhão, embora tivesse que se curvar
em 34 à convocação da Assembléia Constituinte, até se fortalecer politicamente para dar o golpe do Estado Novo em 1937.
Ao contrário dos mineiros, os paulistas nunca souberam emprestar características nacionais às insurgências de sua gente.
Talvez o umbigo paulista seja muito grande e não dê espaço à percepção de que o movimento cívico de 32 traz conseqüências
importantes não apenas para seus filhos, mas para todos os brasileiros. O levante de 9 de julho não é uma data para ficar
circunscrita a São Paulo. Deveria ser melhor estudada, compreendida e reverenciada em
todo o país. A meu ver, esse descuido nacional com o levante paulista talvez seja proposital. A história brasileira não enche
de júbilo os dirigentes republicanos, até porque o saldo cívico deixado pela experiência republicana até agora é melancólico
e passa por episódios de constantes exceções, que incluem a ditadura Vargas e a ditadura militar, sem falar nas crises embaraçosas
abertas pela renúncia de Jânio e o impeachment de Collor.
Curiosamente, um dos artistas que melhor compreendeu o significado amplo do movimento não era brasileiro, mas italiano.
Nascido em Torrete de Ancona em 1898, Galileo Emendabili seria chamado a conceber e realizar o Obelisco e Mausoléu ao Soldado
Constitucionalista de 1932. Já era um escultor em processo de crescimento profissional
no seu país quando imigrou para o Brasil em 1923, fugindo do fascismo emergente. Formou
família e estabeleceu-se em São Paulo, tornando-se um artista consagrado por suas esculturas, das
quais as mais vistosas são o Monumento a Ramos de Azevedo, de 1934, hoje instalado na Cidade universitária da USP, e a obra
do Obelisco, no Ibirapuera, onde a simbologia, a grandeza e a devoção revelam que o artista italiano compreendeu em toda sua
inteireza a importância do movimento constitucionalista.
No início de 2004, a iniciativa de uma empresa de telefonia escolhida para patrocinar uma obra de restauração do monumento
resultou em total desacerto. Antes de qualquer providência, a empresa resolveu cobrir o obelisco com uma enorme propaganda
de alto a baixo com o nome da empresa. A iniciativa revoltou os paulistanos, especialmente um dos últimos descendentes da
família, Paolo Emendabili, neto do artista, que se indignou com a falta de respeito e, munido de mandado de segurança, invadiu
a área para apontar, perante as câmeras de televisão, os prejuízos que, antes de recuperar, a empresa causava ao monumento.
Enfim, passado os embates, ficou a obra. Uma de suas facetas menos conhecida dos paulistanos, infelizmente, é a cripta
que jaz subterrânea. Ali, estão os restos mortais de quase mil combatentes. É um lugar de veneração e respeito. Mas também
permite admirar cinco fabulosos painéis em mosaicos concebidos por Galileo Emendabili e executados no Estúdio Padovan, em
Veneza, em 1950.
Na cripta são três painéis, que representam cenas do Martírio (a crucificação de Cristo), outro a Natividade (o nascimento
de Cristo) e o terceiro a Ressurreição. É curioso que em cada cena de Cristo o mural abre espaço, em segundo plano, para outras
cenas evocando, sucessivamente, a partida e o tombamento do soldado (mosaico
do Martírio), a Fundação de São Paulo (mosaico da Natividade) e o advento da
Constituição de 1934 (mosaico da Ressurreição).
Há ainda um quarto mosaico representativo das Classes Trabalhadoras, que traz em sua figuração de frente o apóstolo
S. Paulo, o pregador incansável da obra de Cristo. Enfim, são 170 metros quadrados de mosaicos adornando
a cripta. Obelisco, cripta, escadarias, portas, mosaicos, material empregado, planta baixa e todos os demais elementos da
obra guardam uma representação numérica complexa e mística que dão ao conjunto um significado que transcende em muito um olhar
simples ou displicente sobre o movimento constitucionalista.
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