Ao final de 2004, de passagem rápida pelo Centro do Rio de Janeiro,
atinei de visitar meu velho amigo Eliomar de Souza Coelho para cumprimentá-lo,
novamente, por mais uma reeleição para vereador carioca, então no PT*. Contemporâneo velho de guerra, Eliomar ingressou na mesma turma que eu no Curso de Engenharia da Universidade
de Brasília, que se abriu em 1965, do qual me afastaria três anos depois para cursar Jornalismo. Tenho orgulho de ter pertencido
ao seu staff político no diretório acadêmico que criamos na ocasião, alinhando-nos à Feub – a única federação de estudantes
que o governo militar extinguiu por decreto no mesmo ato que fechou a UNE, logo após o
golpe de 64. Ambas, no entanto, continuaram funcionando na clandestinidade por um bom período.
Ao ingressar no prédio da Câmara de Vereadores, na Cinelândia, reparei
num mural em pastilhas vítreas, com todas características das obras típicas dos anos 50. Não resisti e saquei de minha câmera
fotográfica, mas só pude bater chapas de pedaços porque toda a área ao lado da obra é normalmente ocupada por carros dos servidores.
O mural tem mais de 60 metros quadrados e, por sua importância artística e histórica, é de lamentar que fique encoberto a
maior parte do tempo pelo estacionamento improvisado na área.
Em seguida, pedi ao vereador a gentileza de me arranjar fotos completas
do mural, o que realizou prontamente, permitindo reproduzir aqui a obra em sua inteireza, apenas prejudicada por umas poucas
colunas à sua frente. Na parte inferior à esquerda, aparece a assinatura do autor, Percy Deane.
Uma informação nunca surge só, parece que tudo conspira para projetar
mais luz sobre um assunto sobre o qual apenas começamos a levantar uma ponta. Ao retornar a Brasília, fui ver de perto uma
exposição importantíssima trazida à Capital da República pela Fundação Armando Álvares Penteado, de São Paulo, no Itamaraty,
sob o título “O Olhar Modernista de JK”.
A intenção da FAAP foi remontar na Capital da República o conjunto de
obras que o prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek, trouxe àquela cidade em 1944, para mostrar o que fazia a constelação
modernista da época. Na mostra, estavam quadros de Di Cavalcanti, Portinari (o
famoso quadro Cabeça de Galo, que tanta polêmica causou na ocasião), Volpi, Guignard, Tarsila, Pancetti, Clóvis Graciano,
Quirino e Hilda Campofiorito, Djanira, Scliar, Burle Marx, José Moraes, Augusto Rodrigues, Lasar Segall (esculturas), Lívio
Abramo e Goeldi. Entre todos havia o caçula Percy Deane, na época com 22 anos, que se exibia com dois quadros.
Percy Deane nasceu em Manaus em 1922, mas já aos 16 anos de idade foi
morar no Rio, ingressando no curso de Arquitetura da Escola Nacional de Belas Artes. Era um aluno brilhante que ao matricular-se
na disciplina de pintura moderna com Quirino Campofiorito tornara-se seu assistente. Três anos mais, encontrou Portinari de
quem se tornou um dos principais amigos, até sua morte, em 1962.
Deane seguiu em frente, sempre enganjado no movimento modernista. A
convite de Niemeyer participou da epopéia da construção da Pampulha nos anos 40, realizando um mural na sede do Iate Clube.
Na exposição que JK montou em Belo Horizonte em 1944, participou com dois quadros, um dos quais retratando sua jovem esposa,
Lupe Deane. O grande renovador das artes mineiras, Alberto da Veiga Guignard, que participou da mostra, também levou à capital
mineira uma pintura retratando a mulher de Percy Deane. É curioso (e irresistível) estabelecer uma comparação entre os dois
trabalhos. Enquanto Guignard pinta a modelo com o jogo de técnicas, de luz e sombras, que o fizeram um mestre, Deane retrata
sua mulher com os olhos de um homem apaixonado, do recém-casado tomado pela sedução e
encantamento. Não pinta apenas com óleo, mas com o coração.
Em 1951, o artista foi convidado a fazer um painel para a Assembléia
Legislativa do antigo Distrito Federal. Em 1960, com a transferência da Capital para
Brasília, o prédio passaria a abrigar a Câmara de Vereadores. E a Assembléia
Legislativa do Rio de Janeiro foi instalar-se no Palácio Tiradentes, também no centro.
No prédio, Percy Deane decidiu fazer uma obra em mosaico, que era a
linguagem que começava a ganhar corpo na cidade, entusiasmando todos os companheiros de sua geração. Na própria mostra “O
Olhar Modernista de JK”, dentre os nomes que a integram, pelo menos oito deles deixaram obras musivas para a posteridade.
Além de Percy, os artistas Portinari, Di Cavalcanti, José Moraes, Clóvis Graciano, Burle Marx, Livio Abramo e Carlos Scliar
realizaram projetos específicos para painéis em pastilhas. Apenas o caso de Scliar tem a singularidade de ter realizado cartões
para mosaico, que não foram executados (ainda) e estão devidamente revelados e comentados em outro capítulo. E é preciso lembrar
que Quirino e Hilda Campofiorito chegaram a participar de cursos de mosaico em Ravenna, na Itália.
Percy Deane nunca mais deixou o Rio de Janeiro, onde veio a falecer
em 1994. Apesar de formado em arquitetura, desde que conheceu Portinari dedicou-se integralmente às artes visuais, como pintor,
desenhista e ilustrador. Entre suas ilustrações mais conhecidas, encontram-se os desenhos feitos para o livro Memórias do
Cárcere, de Graciliano Ramos. Também ilustrou livros de Josué Montelo, de João Cabral de Mello Neto e de muitos outros. Trabalhou
longo tempo como ilustrador da revista O Cruzeiro e desenhista de quadrinhos para revistas infantis, entre as quais o Tico-Tico.
Junto com dois velhos amigos – Carlos Scliar e José Moraes – participou de uma exposição em Vitória, em 1988,
que veio a Brasília no mesmo ano, sua última coletiva.
* Revendo meus
apontamentos em fevereiro de 2009, devo dizer que meu amigo vereador, Eliomar de Souza Coelho, continua reelegendo-se (um
dos melhores, mais honestos e sempre bem votado) no Rio de Janeiro, mas, até por coerência política e ideológica, alistou-se
nas fileiras do PSOL, como membro fundador.
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