Lygia
Clark: a primeira obra a gente esquece?
A artista mineira
Lygia Mendonça Clark e o carioca Hélio Oiticica foram responsáveis por uma verdadeira revolução nas artes plásticas brasileiras
a partir dos anos 50. Com incentivo teórico do grande poeta e crítico Ferreira Gullar, de quem temos o privilégio de desfrutar
ainda hoje de suas contínuas contribuições ao entendimento dos fenômenos artísticos contemporâneos, os dois deixaram para
a posteridade mais indagações que respostas. Todas elas continuam a merecer estudos e admiração por parte de artistas, pesquisadores
e críticos de arte.
O ponto de partida
da trajetória de Lygia, conforme indicado pela maior parte dos estudiosos de sua obra, decorre de sua primeira estada em Paris,
a partir de 1952, quando estudou com Fernand Léger, Dobrinsky e Arspad Szenes. Ao retornar ao Brasil em 1954, já era outra
pessoa, outra cabeça, outra personalidade pronta para rasgar a mesmice do movimento modernista e desafiá-lo com conceitos
e práticas absolutamente inusitadas até então. Integrou o movimento concretista e o neo-concretista, construindo e desconstruindo
sua própria obra. Rompeu com o figurativismo e logo passou à tridimensionalidade, irrompendo com novidades que vão marcar
suas diversas fases produtivas: primeiro libertou-se da moldura; ao final dos 50 adotou os “contra-relevos”, trabalhando
com madeira aberta em muitos planos. Em seguida, passou à fase dos casulos, já então com chapas de ferro dobradas. Logo depois veio a fase dos bichos, talvez uma das mais conhecidas, consistindo em esculturas com dobradiças,
realizadas em chapas metálicas finas, para serem dobradas em formas diversas.
E as fases continuaram
se sucedendo, sempre inventivas, com os nomes que lhe atribuem a crítica : fase dos trepantes (com borracha), fase caminhando
(na qual exibe uma fita de papel extensa que se alonga indefinidamente); logo depois a fase
dos objetos sensoriais (em que explora as possibilidades do corpo na obra de arte) e por último a fase dos objetos relacionais,
de 1976 a 1984 (técnicas terapêuticas que aplicava em seus “pacientes”, desenvolvendo percepções sensoriais e
psíquicas) . Veio a falecer no Rio de Janeiro em 1988, depois de realizar uma trajetória polêmica, marcada ainda por muitas
exposições na Europa e pelas aulas que ministrou na Sorbonne, em Paris.
Sua obra continua sendo
muitíssimo conhecida pela legião de admiradores, professores e críticos. É bem estudada nas Escolas de Artes Plásticas de
todo o país, mas o que ninguém conhece até hoje e sequer registrou em qualquer biografia a seu respeito é o mosaico em pastilhas
– sua primeira obra de arte pública realizada no Rio de Janeiro.
Embora seja o trabalho
de mais fácil acesso a qualquer interessado em apreciar seu percurso artístico,
é, sem sombra de dúvida, o menos conhecido. Revelo agora para quem quiser conhecê-lo: trata-se de um painel em pastilhas vítreas,
seguramente da Vidrotil, realizado na parte frontal do edifício Mira Mar, número 3992 da Avenida Atlântica no Rio de Janeiro.
A obra está muito bem preservada, e, a meu ver, merecia até o tombamento pelo patrimônio histórico municipal.
Sua realização decorre
do período em que Lygia foi estudar com Burle Marx, seu primeiro mestre assim que chegou ao Rio de Janeiro em 1947, procedente
de Minas Gerais. Descobri o painel por acaso, atraído pelas cores fortes que, de logo me reportaram à obra de cores e padrões
semelhantes que o paisagista realizou para o conjunto Pedregulho, em Benfica (RJ), apresentada aqui em outro capítulo.
(Veja Burle Marx e
Lygia, tudo a ver, clicando aqui:Burle Marx, o mosaicista da pedra e da pastilha )
Passeando pelo calçadão
junto aos prédios da Avenida Atlântica, estanquei a dois metros da obra, por força de uma grade de ferro que circunda o prédio
– semelhante a todas as grades que hoje prendem seus moradores nas grandes cidades. O porteiro veio até a mim e pedi
a ele que lesse a inscrição do nome do autor, imaginando que fosse Burle Marx. E aí veio a revelação: era um autêntico Lygia
Clark! Conservado, lindo, de época, super-influenciado pelas cores e estilo do
paisagista. E sobretudo desconhecido dos críticos. A artista assinou e datou o trabalho. Nele se lê claramente: Lygia Clark
1951. O fato ajuda até a esclarecer alguma controvérsia entre os estudiosos da sua obra quanto à data em que se transferiu
para Paris. No Catálogo da Bienal Brasil Século XX, editado pela Fundação Bienal em 1994, o professor e curador Nelson Aguilar
afirma que ela viajou para lá em 1952, mas outros autores (incluindo a Enciclopédia Itaú Cultural) dizem que sua estada na
França iniciou-se em 1950 e estendeu-se até 1952. Ignoram, neste caso, a obra “Escada”, óleo sobre tela que Lygia
pintou e datou em 1951, restaurado recentemente pelo Museu de Conservação e Restauração da FAAP (Fundação Armando Álvares
Penteado), de São Paulo. O mosaico de Copacabana, datado de 1951, reforça a informação
de Nelson Aguilar.
Apesar de estar esteticamente
distante de tudo que Lygia Clark realizou depois que retornou da sua primeira estada na França, entendo que a obra não poderia
ser ignorada pela crítica. Nem por ninguém.
Afinal, por mais que
Lygia tivesse se assumido como “anti-artista” a partir de certo ponto de sua carreira, a primeira obra a gente
nunca esquece.
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