Eu
mal acabara de receber de Salvador fotos do último painel em mosaico concebido por Glauco Rodrigues quando fui chicoteado
pela notícia de sua morte, aos 75 anos, no Rio de Janeiro. Padecia de um câncer nos intestinos e morreu no dia 19 de março
de 2004, vítima de uma parada respiratória no Hospital Samaritano, onde fora internado na véspera. Muitos amigos e parentes
compareceram ao seu enterro no dia seguinte no Cemitério São João Batista, em Botafogo.
Não
cheguei a conhecê-lo, mas fiquei comovido quando soube que ele, já em idade madura, enfeitiçara-se pela arte do mosaico, tendo
passado os últimos anos de sua atividade artística voltado para essa linguagem.
Com ela realizou dois painéis em pastilhas, o primeiro para a Fundação Osvaldo Cruz, no Rio, e depois para o Aeroporto Internacional
Luís Eduardo Magalhães, em Salvador. Ao noticiar o falecimento, à noite, o Jornal Nacional da Rede Globo falou do significado
de sua trajetória artística e levou ao ar imagens desses dois painéis musivos que eternizam sua presença na linguagem das
tesselas.
Glauco nasceu em Bagé, no Rio Grande do Sul, em 1929, iniciando seus estudos acadêmicos
na Escola de Belas Artes de Porto Alegre e em seguida na Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro. Ingressou na seara artística
nos anos 50, no auge do período modernista, vindo a fundar, em Porto Alegre, para onde retornou, o Clube da Gravura, com Scliar,
Danúbio Rodrigues, Vasco Prado e outros companheiros. De volta ao Rio no final da década, iniciou-se na carreira de ilustrador,
justamente no centro daquele furacão de experimentalismo gráfico e cultural que foi a revista Senhor, de novo com Carlos Scliar,
mas também com Jaguar e no convívio com todo aquele grupo de jornalistas e escritores brilhantes, que respondiam pela publicação,
como Paulo Francis, Marques Rebelo, Ênio Silveira, Nahum Sirotsky e tantos outros.
Nos
anos 60 viveu um período na Europa, participou da Bienal de São Paulo, da Bienal de Veneza e do Salão Nacional de Arte Moderna.
E seguiu em frente no mundo das telas, com trabalhos que durante certo tempo hesitaram entre o gesto anedótico e a obra pictórica,
mas seguramente com uma visão crítica do período em que se vivia, conjugando cenas do cotidiano e da história do Brasil. Uma
série de obras sobre o Descobrimento antecede de muito o clima de discussão que se instalaria por ocasião dos 500 anos, permitindo
a Glauco interpretar com ironia profética as cenas da Primeira Missa, numa espécie de releitura da obra do século anterior,
de Vitor Meireles.
Pois
é justamente após realizar um percurso rico no campo da pintura e de acumular uma experiência crítica em diversos domínios
das artes visuais, que Glauco, ingressou no mundo das tesselas, vindo a produzir duas obras de grande expressividade e visibilidade
pública.
O
painel colocado na entrada da Fundação Osvaldo Cruz, no Rio de Janeiro, é uma obra gigantesca material e espiritualmente.
Todo construído em pastilhas da Bizassa (uma empresa italiana com presença cada vez mais significativa em nosso país), foi
encomendado para celebrar o centenário da entidade, no ano 2000. A obra destaca as figuras de Osvaldo Cruz, de Carlos Chagas
e também de Pasteur, exibindo ainda as expedições científicas na Amazônia.
Outro
painel foi realizado por ele na nova Estação de passageiros do Aeroporto Internacional Luís Eduardo Magalhães, em Salvador,
na Bahia, retratando os costumes e manifestações folclóricas baianas. Sua escolha para a execução desse trabalho não poderia
ser mais feliz. Ele conseguiu folclorizar a figura do filho de Antônio Carlos Magalhães, consagrando sua memória em uma risada
feliz em meio a santas, mães de santo, igrejas, cenas da Salvador moderna, numa miscelânea fortemente representativa da Bahia,
de suas cores e seu fascínio. Uma obra, a meu ver, que ninguém faria melhor que ele e que consegue agradar a todo mundo, gregos
e baianos.
Ao
enveredar pelo caminho musivo, Glauco Rodrigues reciclou sua visão plástica e rejuvenesceu a arte, evidenciando que estava
antenado com um movimento de retomada do mosaico no qual começa a se envolver uma multidão de jovens artistas. O escritor
Luis Fernando Veríssimo escreveu dois livros sobre ele, o primeiro intitulado Glauco Rodrigues e o outro O Arteiro e o Tempo,
sobre sua dedicação à arte.