A dimensão do mosaico e a dimensão da Igreja
Entre os dias 16
de abril e primeiro de maio de 2010, os jornais do Rio de Janeiro estamparam os seguintes cabeçalhos:
“Paróquia
Imaculada Conceição terá maior painel mosaico do Rio de Janeiro”
“Será inaugurado
o maior painel mosaico religioso do Rio”
“Arcebispo
do Rio inaugura maior painel mosaico religioso da cidade”
A idéia de ser “o
maior de todos” nunca mostrou-se adequada na discussão sobre mosaico, uma arte que merece mais o debate qualitativo,
estético, imagético e cromático que propriamente dimensional. No caso de obra religiosa, essa fissura pela “grandeza”
deveria ser proporcionada pela inspiração artística e devocional da obra e não pelo seu tamanho físico. Afinal, a “grandeza”
da peça, especialmente de uma obra eclesiástica, não pode agredir a noção de simplicidade característica da vida monástica
e religiosa.
Por outro lado, temos
que convir que os jornais são vendidos nas bancas pelas manchetes que excitam e provocam emoções, sejam para o bem ou para
o mal. Foram essas mesmas manchetes de jornal que levaram ao Recreio dos Bandeirantes, onde se encontra a Paróquia Imaculada
Conceição, uma enormidade de fiéis para a inauguração do “maior painel religioso da cidade” do Rio de Janeiro.
O painel cobre a empena do prédio de seis andares devendo atender à fé religiosa do público católico crescente do bairro.
Os jornais também
destacaram que a imagem foi criada pelo monge beneditino Dom Marcelo Molinero. O mosaico é formado por cerca de 200 mil peças
em vidro, cerâmica, granito, mármore, ouro e pedras preciosas e contempla em sua parte inferior a paisagem que cerca a paróquia:
o mar, a pedra do Pontal, a praia e a igreja. Tem 150 metros quadrados e peso de 700
quilos.
O projeto Âncora é uma obra de inclusão social de grande envergadura na cidade de Cotia, em São Paulo. Walter e Regina Machado dirigem
essa obra, que merece ser vista com respeito e que reclama a colaboração de todos os brasileiros pelo seu alcance e pelo êxito
da proposta. Afinal, o projeto caminha com as dificuldades financeiras características que envolvem atividades dessa envergadura,
sempre necessitando do aporte e do carinho das pessoas mais aquinhoadas da sociedade brasileira e, especialmente, dos governantes.
A Oficina de Mosaico do Projeto Âncora funciona desde 1996. Emprega mulheres e jovens que trabalham sob encomenda,
fazendo painéis e pisos em mosaico com os mais diferentes materiais e temas.
Essas mulheres e jovens já conquistaram um grau tão elevado de reconhecimento profissional que levou o restaurador
José Paulo Strano a empregar seus serviços em diversas obras de reforma de painéis no Estado de São Paulo, inclusive na realização
do painel em mosaico dos 103 Santos da Igreja São Degun Kim, da Igreja coreana em S.Paulo capital. Além deste, os jovens do
Projeto Âncora auxiliaram no restauro do Painel do altar
da Igreja Nossa Senhora de Guadalupe, em Marília(SP) e no Altar da Capela das
Irmãs Paulinas, em Cotia (SP).
Sobre a atividade social de Regina Machado, a revista Jornal
D’Aqui publicou o seguinte texto:
fragmento do mural na Igreja S. Degun Kim |
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Painel mostra os 103 santos da Igreja Coreana |
“11 de março de 2009
Entrevista: Regina Machado Steurer
O Alecrim é uma planta que ama o calor e a vida. É conhecido como a erva da coragem.
E foi com um chá incrivelmente bom e gelado de alecrim que Regina Machado Steurer nos recebeu em seu escritório.
Regina é daquelas pessoas que te deixam à vontade, que tem clareza nas palavras,
no olhar. Uma beleza altiva, ilustre. E ao mesmo tempo, simples, direta.
Alguém que sabe a que veio, ouve e exerce o que seu coração diz. É bonito de se
ver, bom de estar perto. Inspirador.
Regina nasceu em Minas, estudou no Rio, em Bruxelas, morou em diversas cidades.
Formada arquiteta, estudou teologia, lecionou liturgia e se especializou em arquitetura religiosa. Hoje, mantém seu escritório
de arquitetura aqui na Granja, onde desenvolve projetos e gerencia obras de arquitetura e urbanismo, decoração, paisagismo,
liturgia e artes plásticas. Também coordena a Oficina de Mosaico do Projeto Âncora”.
JDA:
Fale um pouco do seu trabalho atualmente.
fragmento do mural na Igreja S. Degun Kim |
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Painel mostra os 103 santos da Igreja Coreana |
Tenho
um escritório de arquitetura com minha sócia, Nádia Neimar, com quem trabalho há mais de 15 anos. Como arquitetas, queremos reafirmar nossas opções por uma arquitetura brasileira, com raízes em nossa cultura,
isso é, as raízes indígenas e africanas. E por uma arquitetura a serviço da vida, acessível e sustentável. A REÚNA - Arquitetos
Associados desenvolve projetos e gerencia obras de arquitetura e urbanismo. Para mim, o espaço físico é nossa fôrma. Cabe
ao arquiteto fazer o planejamento dessa fôrma. O local de trabalho ou de estudo, a casa, a igreja ou capela, são lugares de
encontro. É para lá que a REÚNA quer voltar suas atenções: cuidar dos espaços das nossas atividades profissionais, do nosso
descanso, dos espaços da família ou dos encontros com a comunidade. Reunir é tornar a unir, harmonizar, conciliar, reconciliar,
ligar, aliar, combinar, juntar o que se achava disperso.
O
vocábulo UNA vem do tupi e significa negro, a confirmar nossas raízes. O RE de REÚNA nos remete aos quatro “erres”
da sustentabilidade: reduzir o consumo, reutilizar o que já temos usado, reciclar os produtos dando-lhes outro fim e rejeitar
o que é oferecido pelo marketing e que não precisamos. Outro fator que sempre privilegio é o trabalho local, isso é, comprar
material e contratar mão de obra local, sem dúvida nenhuma também contribui para o universo, amenizando trânsito, poluição
e, claro, gasto de combustível.
fragmento do mural na Igreja S. Degun Kim |
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painel exibe os 103 santos da Igreja Coreana |
JDA:
Como foi sua trajetória profissional, o que te levou a estudar arquitetura?
Na
verdade a escolha por arquitetura eu nem sei ao certo. Gostava de artes, meu avô era artista-plástico, mas foi uma escolha
meio em cima da hora. Aquela coisa de adolescente frente ao momento - vestibular, tendo que fazer a escolha. Eu sempre fui
muito certinha, muito metódica e arquitetura já me atraía pela questão de planejamento que a envolve. Chegando ao final do
curso uma certeza eu já tinha: interessava-me muito mais o planejamento urbano do que só decoração, por exemplo. No estágio
de finalização de curso fui trabalhar na Favela do Vidigal, através da pastoral da Igreja Católica fazendo levantamento das
casas e realizando plantas. Foi aí que fui percebendo que arquitetura tinha um fundo social.
Uma das coisas que aprendi com meus pais e sempre carrego em mim, na minha vida e no meu trabalho é a preocupação com
a justiça social e com o ser humano.
fragmento do mural na Igreja S. Degun Kim |
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O Painel apresenta os 103 Santos da Igreja Coreana |
JDA:
E depois? Como entrou a arquitetura religiosa na sua vida?
Terminada
a faculdade, através de um tio padre, veio a possibilidade de ir para Bruxelas fazer um curso de Teologia. Interessei-me,
movida pela curiosidade, vontade de estudar algo novo e na Europa. O curso durou um ano e foi determinante na minha vida.
Não só pela infinidade de matérias e assuntos estudados mas também pela abordagem do curso que tinha uma linha voltada para
o social e não limitada à Igreja. Foi aí que fui enxergando a vida de maneira mais espiritual e entendendo a fé de serviço,
isso é, uma vida cristã de participação social. Antes de voltar para o Brasil ainda tive a possibilidade de permanecer em
Ruanda, na África por 2 meses e sem dúvida nenhuma, voltei com muito mais certezas. Ao chegar, fiz especialização em
Planejamento Urbano e comecei a escrever cartas para Bispos com visões mais sociais da religião, dizendo
que eu havia feito o curso e que era arquiteta. O bispo do Espírito Santo, da Catedral de São Mateus, me chamou para ampliar
a antiga catedral. Este foi o meu 1º trabalho e a partir daí comecei a estudar bastante porque vi que era um campo fascinante.
O
local de celebração deve atender dois objetivos: ser funcional para as práticas que nele serão desenvolvidas e ser sinal de
Mistério de Deus, do Cristo e da Igreja.
Na
Catedral de São Mateus, por exemplo, a planta semi-circular contribui para a participação dos fiéis que cercam o presbitério
(lugar onde fica quem preside a celebração, onde fica o altar). Antigamente e durante muito tempo as Igrejas retratavam bem
a sociedade da época: em cima ficava o clero, perto do altar os mais ricos, em seguida as mulheres, e nas laterais os homens,
como que cuidando delas. E ao fundo, os escravos, sem cadeira nem nada. Hoje há uma tendência, a própria igreja e os arquitetos
estão considerando uma igreja mais comunitária onde não haja divisão e sim, integração. Daí a importância de um altar central,
onde os fiéis possam ter uma presença participativa, mais integrados, formando uma comunidade.
fragmento do mural na Igreja S. Degun Kim |
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Painel mostra os 103 Santos da Igreja Coreana |
JDA:
De lá para cá foram inúmeros os projetos para construção, reforma e decoração de capelas, catedrais e igrejas, etc. Quais
são os de maior destaque?
A
Catedral de São Mateus, no Espírito Santo e a reforma e acabamentos da Basílica Nacional de Aparecida. Também gostei muito
de transformar o Ginásio do Ibirapuera num espaço de celebração. Foi no aniversário de 250 anos da Arquidiocese de SP e 50
anos de ordenação sacerdotal de dom Paulo Evaristo Arns. Também sempre gosto de destacar a capela aqui do meu escritório.
JDA:
Quanto à Granja Viana, você ainda acha que aqui é uma boa escolha para quem busca uma qualidade de vida?
Já está acontecendo muita coisa, não só aqui mas no planeta. Já estamos começando a viver o resultado de uma sociedade
competitiva, consumista e individualista. Hoje, o mais pobre é a natureza, o planeta. Como vem acontecendo em vários lugares
da Granja (e no mundo), por exemplo, estão construindo 19 novas casas numa área onde havia uma casa só, aqui, ao lado do escritório.
Isso quer dizer que circularão provavelmente de 19 a 40 carros a mais por aqui. Acho que tudo isso
e vários outros fatores nos levam, e na realidade já estão levando, à crise. E acredito plenamente que na crise, quando tudo
está muito ruim, surge algo bom. O que quero dizer é que através da dificuldade, possamos acordar para o cooperativismo. Não
foi à toa que John Nash foi premiado por sua fórmula matemática em que comprovava que a competição divide e exclui, enquanto
a cooperação soma e inclui. Acredito que esses novos condomínios possam virar Ecovilas onde irão morar várias famílias com
um mínimo de impacto possível e com convivência social e trabalhos comunitários. Mais coletivismo e menos individualismo.
JDA:
Como é sua participação no Projeto Âncora?
Fui
responsável pelo projeto arquitetônico e hoje coordeno a Oficina de Mosaico, além de fazer parte do Conselho. O Projeto Âncora
é uma entidade sem fins lucrativos, cujo objetivo é tirar da rua as crianças e jovens pobres da região. Lá são oferecidas
atividades que desenvolvem potenciais, complementam os estudos e melhoram a auto-estima. O projeto foi pensado como uma cidade,
isso é, estão lá “a praça” em forma de Circo (o lugar do coletivo), o ambulatório (ou seja, a saúde), o administrativo
(política), as quadras de esporte (esporte) e as salas de aula (educação). Um fator fundamental sempre foi primar pela beleza.
A beleza educa. O gosto pelo belo é construído aos poucos. Só se opta pelo feio quando não se tem escolha. Não é certo dizer
que o povo não tem gosto, o que ele não tem é opção. O gosto e o prazer pelo belo são intrínsecos ao ser humano. E o belo
não está obrigatoriamente associado ao luxo. Com arte somos capazes de valorizar a matéria mais pobre e sublimar a forma mais
simples. Um espaço belo, que prima pela organização, estética, limpeza e manutenção, está respeitando o indivíduo que por
lá existe. A beleza é pedagógica, educativa. E com 13 anos de vida do Âncora, posso afirmar que nunca houve desrespeito por
alguém diante do espaço físico. Gosto muito da frase de Bertold Brecht que mostra o quanto o meio condiciona o comportamento
das pessoas: “Do rio que tudo arrasta se diz violento, mas não se dizem violentas as margens que o oprimem.”
FOTO DA OBRA INTEIRA DOS 103 SANTOS |
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PAINEL DEDICADO A SÃO DEGUN KIM |
JDA:
E a oficina de Mosaico, conte um pouco.
Em
princípio fiquei pensando em ter uma atividade direta com os jovens e adolescentes do Âncora. Me perguntava como poderia dar
aulas de arquitetura. Aí apareceu o Mosaico, fiz alguns cursos e começamos a fazer artesanato. Depois, me dei conta de que
para comercializar esse artesanato deveria focar o trabalho nas mães das crianças atendidas, assim complementaria a renda
da família e profissionalizaria essas mulheres, (o que seria inviável com os jovens menores de 16 anos). Desde 2004, quando
fizeram um enorme painel para a Igreja São Degun Kim no Bom Retiro, com 103 santos coreanos, o grupo trabalha profissionalmente
com painéis e pisos em mosaico nos mais diferentes materiais: pastilhas de vidro, pasta de vidro italiana, cacos de louça,
vidro quebrado de automóvel, pedras, seixos, tudo serve para compor painéis de beleza e criatividade.
pela transcrição,
Gougon 2010
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