O mosaico premiado de Marcelo de Melo e a conquista
do espaço tridimensional
O ítalo-argentino Lúcio Fontana destacou-se desde a década de 30 como
um precursor de alguns gestos de ruptura para abrir o caminho em direção à arte contemporânea. Sua trajetória ficou muito
associada a um procedimento alucinado em determinado momento de sua carreira, que consistiu em cortar as telas de pintura
a golpes de navalha, interpretado pelos que têm a responsabilidade de fazê-lo como um desejo de abrir a obra para além da
bidimensionalidade.
Em outra vertente, Fontana também é autor de pequenas esculturas que
cobria com pastilhas, sendo a mais significativa delas a que revestiu um busto de sua mulher com tesselas vítreas cobertas
com folhas de ouro. O chamado Ritratto de Teresita chegou a ser mostrado em uma exposição itinerante no início de 2001, aqui
no Brasil. Foi pena que, além desta, não trouxeram outra obra de Fontana, igualmente muito importante, denominada Gallo Argentino,
cuja foto é reproduzida pela professora e especialista italiana Isotta Fiorentini Roncuzzi, para ilustrar sua obra clássica
Il Mosaico (Longa Editore, de Ravenna, 1984).
A preocupação de Lúcio Fontana com a espacialidade nas artes visuais,
que se apresenta por meio de cortes astuciosos nas telas, nasce antes de seus trabalhos escultóricos com mosaico de revestimento.
Curiosamente, os mosaicistas europeus demoraram a compreender a lição deixada pelos povos pré-colombianos, que usaram ouro
e outras pedras semi-preciosas, como turquesa e jade, para cobrir máscaras fúnebres, esculturas de serpentes (algumas delas
com duas cabeças) e outras peças artísticas de significado ritual e mágico. Americanos e europeus saquearam as civilizações
pré-colombianas e levaram para seus países o produto do saque, mas foram necessários alguns séculos para que os artistas do
mosaico europeu admitissem as possibilidades de revestimento em mosaico das peças tridimensionais.
O arquiteto Antoni Gaudí deu um passo significativo nessa direção quando
optou pelo uso de quebra de azulejos para vencer as curvas de suas obras, especialmente no Parque Güell, na Casa Millá, na
Casa Batló e nas cúpulas da Sagrada Família – obras iniciadas depois de 1900, quando passou a contar com o concurso
de um grande parceiro, o também arquiteto Josep Maria Jujol. Este sim era o mosaicista, melhor dizendo, o “trencadista”,
especialista no uso decorativo das quebras de azulejos, dito em catalão “trencadis”. Confundir a obra de Jujol
ou atribuí-la isoladamente a Gaudí é uma simplificação de autoria que só os leigos cometem.
De todos os artistas de nosso tempo ninguém terá obtido melhor proveito
do uso possível da espacialidade e do revestimento em mosaico do que a grande artista Niki de Saint Phalle, uma franco-americana
nascida em 1930 e falecida em maio de 2002. Mal compreendida até quase 1980 por críticos que não atribuíam seriedade aos seus
experimentos, ela deixou vasta obra, de riqueza estonteante, que mexeu e intrigou os espíritos mais refinados das últimas
décadas. Seus trabalhos são vigorosos e coloridos, algumas vezes monumentais, como no caso do Jardim de Tarôs, na Toscana.
São esculturas de revestimento em mosaico que alegram espaços públicos da Alemanha, da França, da Itália, da Suíça, do Japão
e dos Estados Unidos.
Aqui mesmo, neste espaço de conhecimento e pesquisa sobre obras referenciais
em mosaico, foi possível tratar do significado da obra em mosaico com tesselas triangulares de pedra sabão para revestir o Cristo Redentor, no Rio de Janeiro.
Enfim, quando finalmente os artistas do Primeiro Mundo – falo
dos que trabalham com mosaicos – começam a explorar a linguagem, realizando projetos avançados e revolucionários valendo-se
do seu potencial tridimensional, percebo no movimento de um jovem mosaicista brasileiro residente na Europa, Marcelo de Melo,
atitude absolutamente nova no campo experimental da espacialidade do mosaico.
Marcelo foi premiado no início de 2003, na II Exposição Internacional
do Mosaico – “Earth Elements”, realizada pela Sociedade Americana dos Artistas do Mosaico (SAMA) com a obra
“Running Rug”, realizada em 2001 (22x33x26cm). Nessa obra (foto acima), explica Marcelo, “o mosaico não
é apenas a casca do trabalho, mas sim parte integral da estrutura, contribuindo para a sua estabilidade.”. O artista
brasileiro não procurou cobrir a superfície, apenas fez com que o mosaico se bastasse nele mesmo, usando combinações leves
de gesso e arame, permitindo que a obra, à base de porcelana inglesa e smalti italianos,
se auto-sustentasse como uma folha de papel que se amassa para que fique de pé.
Os mosaicistas paranaenses sentem, apesar da distância, justo orgulho
deste conterrâneo que vem se destacando no exterior. Acho que todos os brasileiros deveriam prestar mais atenção à sua trajetória,
até porque se trata de um jovem com uma força de vontade e um potencial enorme para prosseguir crescendo e ocupando espaços
no universo vasto da criatividade artística. Sua poética vai além do mosaico, procurando investigar novas áreas e possibilidades
do objeto de arte mediante revestimentos que dão a cada obra uma roupagem nova e, claro, produzem nova leitura das peças que
realiza.
HGougon abril 2010
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