A segunda morte de Paulo Werneck
Num dos Sermões do Padre Vieira, que já não consigo localizar, prendeu-me
certa feita uma argumentação em que assumiu a tarefa de desfazer o que parecia ser uma contradição dos textos bíblicos. João
Batista dissera que Cristo era a reencarnação do profeta Elias, mas em outra passagem o próprio Cristo negava que fosse Elias.
O que parecia um nó indissolúvel foi desfeito por Vieira com um raciocínio simples, segundo o qual o filho de Deus era e não
era Elias. Não era porque se tratava de outra pessoa, mas era Elias porque um homem não é apenas o que é, mas é também aquilo
que faz. E Cristo fazia as mesmas coisas que Elias.
O sermão me veio à mente agora para compreender o que acaba de ocorrer
no Rio de Janeiro, onde, sem qualquer aviso, sem qualquer preparo, sem qualquer respeito, sem o mínimo de sensibilidade, uma
única pessoa colocou abaixo um painel em pastilhas, realizado no final dos anos 40, pelo artista plástico Paulo Werneck.
Entendi o acontecido como uma segunda morte do artista, falecido há 20
anos, depois de uma vida inteira dedicada às artes, com grande destaque para obras musivas, como, por exemplo, a que fez na
Pampulha, ora passando por reforma a cargo da Fundação Roberto Marinho.
Como dizia o Padre Vieira, o homem é aquilo que faz e Paulo Werneck fez
muito. Realizou dois painéis para o Maracanã à época da Copa do Mundo, em 1950 (infelizmente já desaparecidos), fez obras
de arte de toda espécie para uma centena de agências do Banco do Brasil espalhadas pelo país inteiro (restam poucas dessas
obras), realizou um mural na sede do antigo Banco Boavista, no Rio, ao lado da Igreja da Candelária, que continua íntegro,
mesmo estando voltado para a calçada. Realizou dois painéis para o Edifício Marquês de Herval, na Avenida Rio Branco, que
é o primeiro prédio modernista do centro da cidade (obras bem preservadas). A convite de Oscar Niemeyer, de quem foi companheiro
de banco de escola, participou da maior parte das empreitadas modernistas, desde a Pampulha, nos anos 40, passando pelo Colégio
Municipal de Cataguases, e chegando a Brasília, onde suas obras ainda podem ser vistas no Itamaraty, no Senado Federal, no
prédio da extinta Telebrás (hoje ocupado pela Anatel) e até na fachada do BRB, Banco de Brasília, no Setor Bancário Sul. E
ainda tinha que fugir da polícia porque era militante comunista desde muito jovem.
Deixou uma prole ilustre, da qual destaco sua filha Regina Yolanda Werneck,
festejada autora de livros infantis (alguns dos quais com ilustração de Jô de Oliveira), e a neta, a jornalista Paula Werneck
Saldanha, que mantém há 26 anos um programa televiso chamado Expedições, que mostra o Brasil para os brasileiros.
No último domingo, dia 3 de outubro de 2004, enquanto os brasileiros
votavam, um grupo de pedreiros festejava o final de uma demolição na Rua Belisário Távora, 221, em Laranjeiras, bairro residencial
do Rio. A casa fora vendida para dar lugar a uma construção vertical acima dos padrões da área. Tudo fora posto a pique, menos
um painel que ornava o muro divisório entre a antiga casa e um dos prédios vizinhos.
Tratava-se de mais uma obra de Paulo Werneck.
Temerosa de que os pedreiros fossem demolir a peça, uma companheira mosaicista
do Rio de Janeiro me enviou mensagem pela manhã comunicando a situação. Cuidei de avisar uma neta do artista, Cláudia, irmã
de Paula Saldanha. A moça tem lutado valentemente pela preservação da obra do avô e já conseguiu o tombamento de pelo menos
três murais no Rio de Janeiro através do Departamento Municipal do Patrimônio Cultural. Cláudia Werneck deslocou-se até o
local da demolição, onde encontrou o antigo proprietário da casa demolida, um energúmeno chamado Canela que, com a arrogância
própria dos ignorantes, alegou que iria retirar na marra o painel e transportá-lo para outra residência de sua propriedade.
De nada adiantou a argumentação da neta do artista, assinalando que uma obra dessa envergadura não poderia ser retirada por
qualquer pessoa, sobretudo desqualificada.
O Sr. Canela passou os últimos três dias pondo a pique o painel e terminou
hoje sua empreitada macabra! Não resta mais nada a fazer a não ser lamentar por mais esta perda de uma obra de arte.Exibo
aqui as últimas fotos do painel, que nunca mais poderá ser visto na sua integridade. As fotos foram obtidas no último domingo
pela companheira do Rio de Janeiro. Cheguei a enviar carta ao jornal O Globo no próprio domingo, buscando alertar a mídia
para a questão. Foi em vão. O jornal do dia seguinte tratou quase unicamente da vitória estrondosa do prefeito César Maia.
Também procurei um amigo influente do IPHAN, de Brasília, que me alertou: “Se a peça não estiver tombada não há nada
a fazer”.
Paulo Werneck morreu outra vez.
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