NIEMEYER VETOU MOSAICOS DE PORTINARI

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Eis o Portinari construído para Brasília
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Brasilienses aguardam pela obra há quase 50 anos

Brasília aguarda há meio século murais que Portinari fez para a cidade

Alguém já se perguntou por que razão Portinari não participou da alvorada de Brasília? Por que não realizou obras para a cidade no período da construção? Afinal, o mestre de Brodósqui esteve presente em todos os projetos significativos da aventura modernista brasileira, desde a realização do edifício-sede do Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro dos anos 30, com Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Bruno Giorgi e Burle Marx, bem como nos anos 40, com a construção do Colégio Cataguases, e na mesma década, com o projeto da Pampulha, por iniciativa do então prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek.

 

Cândido Portinari morreu em 1962, com apenas 58 anos (contaminado pelo chumbo das tintas), no auge de seu vigor intelectual e criativo. Por que não participou de Brasília?

 

Motivado pelas manifestações de resgate que se multiplicaram em todo o país em função do centenário de seu nascimento, fui procurar a resposta. Ao pesquisar em sua Cronobiografia (um levantamento exaustivo de tudo que saiu na imprensa a seu respeito, proporcionado pelo Projeto Portinari) deparei com uma informação surpreendente, publicada na edição do Correio da Manhã de 11 de março de 1958. Em entrevista ao jornal, afirmava o pintor:

 

“Há bastante tempo fiz, por solicitação de Oscar Niemeyer, maquetes de um mosaico para a capela presidencial e de um mural. O mosaico seria executado em Ravena, de onde me mandaram orçamento e prazo. Aqui acharam o prazo longo, 13 meses, e propuseram que eu fizesse coisa mais simples, para ser executada aqui mesmo no Brasil. Não concordei. Ficou então combinado que eu faria somente o mural. Mas em vista da demora do pessoal de Brasília em decidir definitivamente o assunto e de compromissos que assumi antes, sou obrigado a já não aceitar nem esse trabalho. Creio que assim fica bem claro, para alívio de muitos, que não estou fazendo nenhum trabalho para este governo”.

 

Está aí a resposta à questão. Mas restava uma pergunta: e a maquete para o mosaico? Ela existe? Seria possível recuperá-la? Enviei mensagem ao Projeto Portinari. Trata-se de um trabalho seriíssimo de resgate e documentação de todas as obras realizadas pelo mestre. É conduzido há mais de 25 anos por seu filho único, o professor João Cândido Portinari. Eis os dados que me foram passado com grande presteza e generosidade, juntamente com foto do projeto:

 

“Jesus e os Apóstolos, 1957

Desenho a grafite e lápis de cor/papel 32,5 x 48cm

Assinada e datada na metade inferior direita: Portinari 57

 

Estudo para pintura mural em mosaico para a Capela do Palácio Alvorada, em Brasília, DF, que não foi executada”.

 

A existência dessa maquete significa a possibilidade concreta de realizar o mosaico a qualquer tempo, para redimir Brasília dessa omissão imperdoável. É claro que Brasília abriga hoje obras do pintor. São 44 ao todo (levantamento também do Projeto Portinari), mas nenhuma que ele tenha feito exclusivamente para a cidade. O Banco Central possui um acervo considerável, o Itamaraty também guarda, pelo menos, uma tela significativa; e o Memorial JK possui um retrato em corpo inteiro do presidente Juscelino presenteado por Portinari. Quando descobri a existência da maquete do painel de Portinari destinado a Brasília para ser executada em pastilhas vítreas, logo imaginei a possibilidade de construí-lo, ainda que decorridos cinco décadas,  recorrendo-se à algum ateliê qualificado a realizar obra de tamanha responsabilidade.

 

portinariparahpg.jpg

GESTO DE GRANDEZA

 

Num primeiro momento, achei que a capelinha do Palácio Alvorada já deveria ter sido ocupada por outro artista. Logo fiquei sabendo que o muralista Athos Bulcão fora chamado a fazer o que Portinari não fez. De fato, Athos Bulcão foi convidado a decorar a Capela no lugar de Portinari, mas teve a gentileza de criar um projeto singelo e de uma elegância fundamental para o teto (uma cruz, um peixe, um sol e uma meia lua) e outro projeto — um vitral — para as duas folhas da porta de entrada da Capela. Deixou os lambris das paredes sem qualquer arte, reservando-as para uma eventual retomada da obra original concebida pelo mestre. Apenas determinou, ao final das outras intervenções, que os lambris fossem recobertos com finíssimas folhas douradas para guarnecê-los por tempo indeterminado.

 

Em junho de 2003, quando tomei contato com a reprodução do projeto desenhado por Portinari, procurei o secretário de Cultura do Governo do Distrito Federal, diplomata Pedro Bório, para tentar convencê-lo a patrocinar o resgate da obra. Gostou da idéia, me cobrou uma estimativa de custo e anunciou que o primeiro passo seria estabelecer um contato com o filho, o professor João Cândido.

 

Poucos dias depois, ao saber de minha iniciativa, João Cândido, que, desde 1979, dedica-se em tempo integral ao projeto de catalogação do vastíssimo acervo do pai — perto de cinco mil obras —, colocou-se à disposição para ajudar no que fosse preciso. De pronto, enviou-me mais duas fotos de outras maquetes de Portinari que também nunca chegaram a ser executadas. Apesar do interesse do secretário de Cultura e de outros tantos representantes do alto escalão federal, o projeto não deslanchou.

 

Interesse italiano

 

Enfim, no dia 19 de novembro de 2003, no Itamaraty, houve o lançamento do catálogo contendo os esboços realizados por Portinari para o painel Guerra e Paz, que executou na década de 50 para a sede das Nações Unidas em Nova York. O professor João Cândido, com aquela devoção religiosa à celebração da vida do pai, transmitiu-me a seguinte informação: “O governo italiano vai enviar ao Brasil um grupo de artesãos mosaicistas de Ravena, municiados de smalti italianos e pastilhas vítreas para realizar no Rio de Janeiro a obra de Portinari para Brasília”.

 

Anunciou também que, a partir das outras duas maquetes de Portinari, seriam realizados outros painéis em mosaicos, sendo que um deles iria para a PUC do Rio de Janeiro, que acabara de construir uma capela no campus, e um terceiro seria a transformação para a linguagem das pastilhas do projeto de afresco-mural, que também fora projetado para a Capela do Alvorada, e seria levado para a Itália. O projeto decorria de um programa do governo italiano, denominado Italiani d’oriundi, que tem por objetivo ajudar a resgatar as obras de imigrantes italianos destacados em toda parte do mundo.

 

Esperei ansioso pela vinda dos mosaicistas de Ravena. Eles, porém, nunca vieram. Envolvido por tantas comemorações relativas ao ano de Portinari, o filho João Cândido anunciou uma iniciativa que funcionários do governo italiano prometeram e festejaram, mas não chegaram a concretizar. Coisas de italiano.

 

Painel executado nas paredes da PUC
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UM TERCEIRO PAINEL PARA MOSAICO

 

Da reitoria da Pontífice Universidade Católica Rio, onde lecionou matemática durante boa parte de sua vida, o filho de Portinari recebeu confirmação do interesse em ter na parede do templo um painel destinado à nova capelinha do campus. Em outubro de 2004, João Cândido solicitou um orçamento ao Ateliê Sarasá, de SP, para realização do painel. Assim como as duas outras obras destinadas ao Palácio Alvorada, o trabalho tem características religiosas: o desenho mostra Jesus, ainda criança, conversando com os doutores do templo.

 

O Ateliê Sarasá é um dos mais competentes do país para a realização de mosaicos, mas o ateliê da arquiteta Isabel Ruas (Oficina do Mosaico) também possui todas as qualificações para a empreitada. Neste caso, acabou prevalecendo sua escolha para a execução do trabalho. O orçamento original foi da ordem de R$ 161 mil (incluído o trabalho da oficina de Isabel, o custo da iluminação e a aquisição de pastilhas em Ravena) e, uma vez concluído, sua avaliação de mercado alcança a casa dos R$ 2,6 milhões, segundo pesquisa efetuada pela Bolsa de Arte do Rio de Janeiro.

 

Painel em mosaico na Capela da PUC, detalhe
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Oscar Niemeyer: “A CAPELA ESTÁ COMPLETA”

 

Em 2004, João Cândido chegou a procurar Oscar Niemeyer, no Rio de Janeiro, às vésperas de completar 97 anos de idade, para lembrá-lo da existência dos projetos elaborados na década de 50 por seu pai destinados à Capela do Alvorada. Como todo o palácio presidencial começara a passar por uma reforma geral que iria levar um ano, seria a hora adequada para realizar, pelo menos, o painel em mosaico concebido originalmente para a Capela.

 

Niemeyer ouviu com atenção a ponderação de João Cândido, mas não chegou a se comprometer. O mesmo ocorreu poucos meses depois quando o arquiteto Sérgio Brasileiro, do Banco do Brasil, procurou-o com a mesma sugestão, investido da função de coordenador governamental para as obras do Palácio Alvorada. Nunca ficaram claras as razões que levaram Oscar Niemeyer a protelar a execução das obras de Portinari. Na conversa com Sérgio Brasileiro, ele disse apenas: “A Capela está completa”, e mudou de assunto.

 

A atitude é, no mínimo, estranha porque em muitas de suas obras modernistas, Niemeyer convidou Portinari para realizar painéis de azulejos ou pinturas murais e Paulo Werneck para execução de painéis em mosaico (como no revestimento da Pampulha, em BH, no Banco Boavista, no Rio, no Palácio Itamaraty, em Brasília, e muitos outros).

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MAR DE CONTRADIÇÕES

 

Outras contradições vieram à tona em setembro de 2006, quando a repórter Lílian Primi, d’O Estado de S. Paulo, abordou o problema de forma competente e corajosa, cobrando uma posição do arquiteto. Encaminhou as fotos de duas obras de Portinari concebidas para a Capela do Palácio e esperou resposta. Oscar Niemeyer enviou a seguinte mensagem:

 

“É estranho que depois de quase 50 anos apareça um desenho de Portinari para a capela do Alvorada. Nunca tinha visto esse desenho, e é sem ele que a capela foi tombada. E o pior é que não vejo nenhuma relação das duas versões da foto com a capela.

Cordialmente, Oscar Niemeyer”

 

A declaração é no mínimo descortês com o filho de Portinari que dois anos antes levara ao arquiteto toda a documentação relativa à obra, incluindo cartas trocadas entre o arquiteto e o presidente da Novacap em 1957, Israel Pinheiro, referente à realização dos murais, e o desenho que o pai fizera à mão, em lápis cera, destinando a obra ao Palácio Alvorada, a pedido do próprio Niemeyer.

 

Com a perseverança característica dos bons jornalistas, Lílian Primi insistiu com Niemeyer perguntando a ele os motivos da recusa. E ouviu o seguinte: “Portinari foi meu amigo, trabalhamos juntos, mas esses desenhos eu nunca vi”. A repórter insistiu novamente: “Mas o João Cândido entregou toda a documentação ao senhor”...

E outra vez a mesma resposta: “Não conheço esses desenhos”.

 

Em respeito à idade avançada do arquiteto, o filho de Portinari preferiu calar-se. Uma atitude da maior dignidade, própria de um homem de sua estatura ética e moral. Pessoalmente, não acredito que a história acabe aí. A repórter paulista ouviu José do Nascimento Júnior , diretor do departamento de Museus e Centros Culturais do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan). Ele disse, e ela publicou, que estaria examinando uma outra forma de viabilizar a execução dessas maquetes. “'Podemos encontrar outro lugar, no Palácio mesmo. O importante é dar uma solução que agrade a todos”, disse à jornalista.

 

PROJETO REALIZADO... PARA A CAPELA DA PUC

 

No momento que retomo o assunto, em fevereiro de 2009, Niemeyer encontra-se com 101 anos. Acaba de produzir mais uma obra monumental para a cidade de Brasília (onde moro). A maioria dos arquitetos da cidade rejeitou o projeto, sob pontos de vista estritamente profissionais, técnicos e estéticos. A população da cidade, uma vez consultada pelo jornal local, o Correio Braziliense, também foi unânime em rechaçar a iniciativa. Oscar propusera a construção de uma  “Praça da Soberania”, uma escultura monumental de altura superior à altura do Congresso (que é um prédio de 28 andares).

Diante de tamanha rejeição, o arquiteto cedeu, desistiu de insistir no seu megaprojeto.

 

O drama representado pela tal “Praça da Soberania,que ocuparia parte do gramado em frente a Estação Rodoviária de Brasília ocorre três meses depois de chegar a bom termo a execução do painel “Jesus entre os Doutores do Templo”, que Portinari concebeu em 1954 para ser executado com pastilhas procedentes de Ravena. As pastilhas foram adquiridas naquela cidade italiana e transformadas num belíssimo painel instalado ao final de 2008 nas paredes de saída da Capela da Pontífice Universidade Católica do Rio de Janeiro. A execução coube à competentíssima arquiteta, paisagista e mosaicista Isabel Ruas Pereira Coelho. A obra foi doada pelo filho, João Cândido Portinari à PUC, em agradecimento por haver abrigado por 25 anos a sede do Projeto Portinari, que resgatou e documentou todas as obras de seu pai espalhadas pelo mundo. Terminado o levantamento, só resta agora esperar pelo tempo em que se possa e se volte a falar novamente sobre os dois projetos para painel em mosaico que Portinari projetou para o Palácio da Alvorada. E que o arquiteto Oscar Niemeyer diz ignorar. Uma lástima.