Belém, Belém, pra nunca mais ficar de bem!
Do artista Douglas Marques de Sá muito já se falou, sobretudo de sua trajetória iniciada em pintura
na Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, no início dos anos 50, e aperfeiçoada no Museu de Arte Moderna,
também no Rio, e no Museu de Arte de São Paulo, tornando-se posteriormente mestre nessas mesmas instituições.
Depois de uma coleção de prêmios no eixo Rio-São Paulo e de um período de vivência na Europa e nos
EUA na segunda metade dos anos 60, esse paulista de S. José dos Campos transfere-se para Brasília em 1972, passando a dar
aula no antigo Instituto Central de Artes da Universidade de Brasília, por onde se aposentou há poucos anos. Aos 73 anos,
continua ativíssimo em seu ateliê no Lago Sul, de onde brotam continuamente telas originais e inesperadas, sinalizando a inquietação
permanente do artista.
O que poucos sabem, no entanto, é que, na base de sua formação acadêmica, Douglas participou da grande
aventura do mosaico nos anos 50 no Rio de Janeiro, que atraiu toda a constelação modernista, de Di Cavalcanti a Portinari,
de Carlos Bracher a Quirino e Hilda Campofiorito, de Antonio Carelli a Flávio Shiró, de Volpi a Clóvis Graciano, de Burle
Marx a Calabrone.
Pois ao longo de toda a década de 50, Douglas dedicou-se de corpo e alma à produção variada de obra
musiva, boa parte dela dedicada a prédios residenciais do Rio de Janeiro, especialmente de Copacabana, um bairro que ainda
guarda, em muitos de seus edifícios, painéis em mosaicos perfeitamente datados, refletindo o período de ouro de sua história.
Assim como Athos Bulcão, que até a véspera de mudar-se para Brasília realizava mosaicos no Rio de
Janeiro, Douglas também encontrou, nas novas edificações da cidade, uma clientela farta para os murais musivos.
Mas sua obra mais refinada, aquela que marcou o apogeu daquela fase, decorreu de encomenda do então
novíssimo Aeroporto Internacional de Belém do Pará, que exigiu do artista dois anos de trabalho contínuo para vencer os 60
metros quadrados de execução do painel. Foi realizado no Rio de Janeiro, sendo concluído em 1957, todo ele em pastilhas de
vidro, fabricadas pela Vidrotil, uma empresa que, vale assinalar, instalou-se em São Paulo em 1948, viabilizando as propostas
musivas dos artistas dos dourados anos 50, em todo o país. E que prossegue hoje, tornando possível as obras de artistas destacados
como Cláudio Tozzi, Tomie Ohtake e muitos outros que continuam abrindo caminhos através da arte do mosaico.
Antes da entrega da obra, Douglas a expôs no Museu Nacional de Belas Artes no Centro do Rio de Janeiro,
obtendo as mais significativas louvações da crítica. A cronista Eneida, numa coluna do Diário de Notícias (8/5/1957), do Rio
de Janeiro, parabeniza o artista, dá notícia da exposição e comove-se: Vi o mural de Marques de Sá e fiquei contente. Lá estão
nossas aves, nossas flores, um jacaré anuncia que não se brinca com os nossos rios, há um gavião tão real que já prepara seu
vôo, e vai ser bonito quando o turista ou mesmo o natural do país chegar a Belém e tiver a saudá-lo no aeroporto nossa flora
e fauna. Eneida era paraense apaixonada (escreveu uma obra clássica, Banho de Cheiro, de amor à sua terra e à sua gente) e
militante política do velho Partidão, assim como Douglas.
Uma vez concluído, exibido e louvado pela crítica, o painel foi transportado para Belém e instalado
no Aeroporto Internacional. Iluminou com sua graça o saguão de embarque e desembarque desde 1957 até os primeiros dias do
golpe militar de 1964. Por essa época, o colunista Stanilaw Ponte Preta (pseudônimo do jornalista Sérgio Porto) percebeu que
um festival de besteiras assolava o território nacional. E Belém não podia ficar de fora. Um oficial da Aeronáutica cismou
com o painel de mosaico executado por Douglas provavelmente por discordar da militância política do autor e mandou derrubá-lo
da noite para o dia. Assim, numa dessas manhãs chuvosas de Belém, a cidade amanheceu
sem o seu painel, que retratava, com rara propriedade, as riquezas do Estado, suas matas e florestas, sua variedade piscosa,
seus animais e seus pássaros e até mesmo o petróleo que começava a surgir na região, prometendo uma era de progresso.
Douglas não guardou fotos do trabalho, mas, a meu pedido, vasculhou o baú de trastes antigos e encontrou,
bem guardados, os esboços originais da obra, que reproduzo aqui, deplorando a mediocridade que um dia assaltou a vida brasileira.
A ditadura militar destruiu obras de arte e reprimiu todos sinais de vida inteligente no país. Feriu e sangrou o patrimônio
cultural brasileiro e, neste caso, como diz a letra de uma saudosa canção de Pixinguinha, deixou cacos de vidro espalhados
no meu coração.
H. Gougon, em Brasília, setembro de 2003